CLICK HERE FOR BLOGGER TEMPLATES AND MYSPACE LAYOUTS »

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Capítulo Um - Parte Quatro


Lá em cima, depois das escadas estreitas, seu quarto estava frio. As lareiras não eram acesas, a não ser no auge do inverno. Quando Gorlois não estava, Igraine partilhava seu leito com a criada, Gwennis, e a prolongada ausência do marido dava-lhe uma desculpa para ter Morgana em sua cama, à noite. Por vezes, Morgause também dormia ali, dividindo com elas as mantas de pele que as protegiam contra o frio intenso. O enorme leito matrimonial, coberto por um dossel e protegido por cortinas contra as correntes de ar, era mais do que suficiente para as três mulheres e a criança.

Gwen, que era velha, cochilava num canto. Igraine não quis acordá-la, e despiu sua roupa cotidiana num canto, de lã sem tingir, trocando-a por um belo vestido enfeitado no pescoço com uma fita de seda, lembrança que Gorlois lhe trouxera de Londinium. Colocou nos dedos uns anéis de prata que tinha desde menina... e que agora só entravam nos seus dois dedos menores... e no pescoço, um colar de âmbar que Gorlois lhe dera. O vestido tinha uma cor de ferrugem e levava uma sobretúnica verde. Encontrou o pente de chifre talhado e, sentada num banco, começou a passá-lo nos cabelos, desembaraçando-o pacientemente. De um outro aposento, ouviam-se gritos, e deduziu que a ama estava penteando Morgana, que não gostava disso. Os gritos cessaram de repente, e concluiu que a menina fora silenciada por um tapa, ou talvez, como por vezes acontecia quando estava de bom humor, Morgause a estivesse penteando com os seus dedos inteligentes e pacientes. Por isso, Igraine sabia que a irmã menor era capaz de fiar muito bem, quando desejava. Tinha mãos sábias para tudo o mais – para pentear, para cardar, para fazer tortas de Natal.

Igraine trançou o cabelo, prendeu-o no alto da cabeça com uma passadeira de ouro, e colocou o broche, também de ouro, na gola do manto. Olhou-se no espelho de bronze, presente de casamento dado por Viviane, e vindo, pelo que disseram, de Roma. Sabia, ao amarrar o vestido, que seus seios haviam voltado ao que eram antes: Morgana fora desmamada há um ano, e eles estavam apenas um pouco mais macios e pesados. Sua esbelteza antiga retornara, pois se havia casado com aquele vestido, e os laços não estavam nada apertados.

Quando voltasse, Gorlois havia de querer levá-la novamente para a sua cama. Da última vez que a vira, Morgana estava ainda mamando, e o Duque aquiescera ao pedido de Igraine, para que a deixasse continuar a alimentar a menina durante o verão, quando tantas crianças pequenas morrem. Sabia que ele estava descontente porque não lhe dera o filho tão desejado – os romanos estabeleciam a linhagem pelo ramo masculino, e não pelo feminino, o que seria mais sensato. Era tolice, pois como poderia um homem ter absoluta certeza de quem era o pai de qualquer criança? É claro que eles preocupavam-se muito com quem se deitavam as mulheres, e fechavam-nas e espionavam-nas. Não que Igraine precisasse ser vigiada: um homem já era ruim, por que haveria de querer outros, que poderiam ser piores?

Embora estivesse ansioso por um filho, Gorlois fora indulgente, deixando que Igraine ficasse com a menina na cama e continuasse a amamentá-la, e até mesmo se abstivera de procurá-la, passando as noites com a criada Ettarr, para que ela não voltasse a engravidar, e com isso perdesse o leite. Também ele sabia quantas crianças morriam, ao serem desmamadas antes que pudessem mastigar a carne e o pão. Crianças alimentadas com água de farinha eram enfermiças e com freqüência não havia leite de cabra no verão, quando estavam em condições de tomá-lo. As que tomavam leite de vaca ou de égua tinham vômitos e morriam muito amiúde, ou sofriam de soltura intestinal e não resistiam. Por isso, ele deixara Morgana mamar no peito, adiando assim a chegada do filho que desejava, por mais um ano e meio, no mínimo. Igraine tinha pelo menos essa razão para lhe ser grata, e não reclamaria, mesmo que ele lhe fizesse logo um outro filho.

Ettarr engravidara naquela visita e parecia envaidecer-se: seria ela quem teria um filho do Duque da Cornualha? Igraine não tomara conhecimento da moça; Gorlois tinha outros filhos bastardos, um dos quais o acompanhava agora, no campo do duque de guerra, Uther. Mas Ettarr adoecera e abortara, e Igraine fora suficiente discreta para não perguntar a Gwen porque parecia tão alegre com isso. A velha conhecia demais as ervas, para que Igraine pudesse ficar tranqüila. Algum dia, resolveu ela, farei com que me diga exatamente o que colocou na cerveja de Ettarr.

Dirigiu-se à cozinha, e a saia comprida arrastou-se pelos degraus de pedra. Morgause estava lá, com o seu melhor vestido, e Morgana, com roupas de festa, cor de açafrão, parecia tão morena quanto um picto. Igraine segurou-a, com prazer. Pequena, morena, delicada, tinha ossos tão diminutos que era como segurar um passarinho macio. De onde viria a aparência daquela criança? Ela, Igraine, e Morgause, eram altas e tinham cabelos vermelhos, cor de terra, como todas as mulheres da tribo, e Gorlois, embora moreno, era romano, alto, esguio e aquilino, endurecido pelos anos de luta contra os saxões, demasiado cônscio de sua dignidade romana para demonstrar muita ternura para com uma jovem esposa, totalmente indiferente à filha, nascida em lugar do menino que ele queria.

Mas, Igraine lembrou-se, os romanos arvoravam-se o direito divino de vida e morte sobre seus filhos. Havia muitos deles, cristãos ou não, que teriam exigido da esposa que não criasse a menina, a fim de lhes dar logo um filho. Gorlois fora bom para ela, deixara-a criar Morgana. Embora Igraine não lhe desse muito crédito à imaginação, talvez ele compreendesse como se sentia em relação à filha, sendo uma mulher das tribos.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Capítulo Um - Parte Três

Na pequena sala junto do pátio, onde havia sol nos dias limpos, sua irmã mais nova, Morgause, de treze anos e florescente, trajando um amplo vestido de casa, de lã sem tingir, e um velho e desgrenhado manto por sobre os ombros, fiava descuidadamente com um fuso simples, enrolando o fio desigual num carretel. No chão, junto à lareira, Morgana fazia rolar um carretel velho, como se fosse uma bola, observando as trajetórias caprichosas do cilindro assimétrico pelo chão, empurrando-o para um ou outro lado, com os dedos gorduchos.

– Será que já não fiei bastante? – queixou-se Morgause. – Meus dedos estão doendo! Por que tenho de fiar, fiar, fiar sempre, como se fosse uma criada?

– Toda dama tem de aprender a fiar – respondeu Igraine, como sabia que devia fazer –, e seu fio é muito malfeito, ora grosso, ora fino... Seus dedos perderão o cansaço, quando se habituarem ao trabalho. Dedos doloridos são indício de que você tem sido preguiçosa, já que não se acostumaram às suas tarefas.

Tomou de Morgause o carretel e o fuso, girando-os rapidamente com grande facilidade. O fio desigual, em suas mãos experientes, adquiriu uma espessura perfeita.

– Veja, pode-se tecer com este fio sem deixar falhas na lançadeira... – e de repente cansou-se de proceder como devia. – Mas, agora, pode deixar de lado o fuso. Antes do fim da tarde, teremos hóspedes.

Morgause olhou para ela.

– Não ouvi nada – disse. – Nem chegou cavaleiro algum trazendo mensagem!

– Isso não me surpreende – respondeu Igraine –, pois não veio nenhum cavaleiro. Foi uma Visão. Viviane está a caminho, e Merlim vem com ela.

Só teve intuição desse último detalhe no momento em que falou.

– Pode, portanto, levar Morgana para a ama, e vista o seu vestido dos domingos, o tingido de açafrão.

Morgause abandonou o fuso com alegria, mas fez uma pausa para olhar para Igraine:

– O vestido de açafrão? Para minha irmã?

– Não para nossa irmã, Morgause, mas para a Senhora de ilha sagrada, e para o Mensageiro dos Deuses.

Morgause olhou para baixo, para o chão decorado. Era uma jovem alta, forte, que começava a transformar-se em mulher; tinha um cabelo abundante e avermelhado como o de Igraine, e havia sardas em sua pele, embora ela colocasse cuidadosamente leite batido sobre as manchas, e implorasse à mulher que cuidava das ervas que lhe recomendasse banhos e plantas medicinais para tratá-las. Aos treze anos, já era tão alta quanto Igraine, e seria mais alta ainda. Pegou Morgana num gesto sem elegância, e levou-a consigo. Igraine gritou-lhe, já à saída:

–Diga à ama para vestir a menina com uma roupa de festa e depois você pode trazê-la aqui para baixo; Viviane ainda não a conhece.

Morgause resmungou qualquer coisa sobre a sua impossibilidade de compreender por que uma grã-sacerdotisa haveria de querer ver uma criancinha, mas falou baixo, e Igraine não ouviu.

Capítulo Um - Parte Dois


Tirou o manto dos ombros, com um gesto; lá dentro do pátio estava mais quente, fora do alcance do vento cortante. E ali, quando a cerração rodopiou e esgarçou-se, pairou à sua frente, por um momento, uma figura vinda da bruma de da névoa: sua meia-irmã, Viviane, a Senhora do Lago, a Senhora da ilha sagrada.

– Irmã! – As palavras tremeram, e Igraine sabia que não as havia gritado, mas apenas murmurado, as mãos apertadas contra o peito. – É você, realmente, que eu vejo aqui?

O rosto tinha um ar de censura, e as palavras pareciam desaparecer no som do vento, além das muralhas.

Você abandonou a visão, Igraine? De sua livre vontade?

Magoada pela injustiça dessas palavras, Igraine respondeu:

– Foi você quem determinou que eu devia desposar Gorlois... –, mas a forma de sua irmã desaparecera nas brumas, não estava ali, jamais estivera. Igraine pestanejou: a rápida aparição se fora. Envolveu-se no manto, pois sentiu frio, muito frio: sabia que a visão tirava a sua força do calor e da vida de seu próprio corpo. Pensou: Não sabia que eu ainda podia ver dessa maneira, tinha certeza de que não podia mais... e estremeceu, sabendo que o padre Columba consideraria isso obra do diabo, e que deveria confessar-se com ele. É certo que, ali no fim do mundo, os padres eram tolerantes, mas uma visão não declarada em confissão seria, sem dúvida, tratada como heresia.

Franziu as sobrancelhas: por que deveria tratar uma visita de sua irmã como obra do diabo? Padre Columba podia dizer o que quisesse, mas talvez o seu deus fosse mais sábio do que ele. Isso não seria muito difícil, pensou Igraine, reprimindo uma risada. Talvez padre Columba se tivesse tornado um sacerdote do Cristo porque nenhum colégio de druidas aceitara um homem tão estúpido. O Deus do Cristo parecia não importar-se com a inteligência de um padre, desde que este pudesse engrolar a missa e ler e escrever um pouco. Ela, Igraine, tinha mais instrução do que o padre Columba e falava melhor o latim, quando queria. Não se considerava, porém, instruída: não tivera força suficiente para aprofundar-se na visão mais profunda da Velha Religião, ou de penetrar nos Mistérios além do que era absolutamente necessário a uma filha da ilha sagrada. Mas embora fosse ignorante em qualquer Templo dos Mistérios, podia passar, entre os bárbaros romanizados, como mulher de cultura.

Capítulo Um - Início


Mesmo em pleno verão, Tintagel era um lugar assombrado. Do promontório onde estava, Igraine, esposa do Duque Gorlois, olhou para o mar. Enquanto contemplava a cerração e a névoa, pensava em como poderia saber quando a noite e o dia teriam a mesma extansão, para poder celebrar a Festa do Ano-Novo. Naquele ano, as tempestades de primavera haviam sido excepcionalmente violentas; noite e dia o rumor das ondas ressoara pelo castelo, impedindo seus habitantes de dormir, e até os cães uivavam dolorosamente.

Tintagel... ainda havia quem acreditasse que o castelo fora levantado, na rocha escarpada no extremo final do longo promontório que se projetava mar adentro, pela magia do antigo povo e Ys. O Duque Gorlois ria-se disso e dizia que, se tivesse esse poder, tê-lo-ia usado para impedir que o mar avançasse, ano a ano, sobre a terra. Nos quatro anos em que estava ali, desde que chegara como noiva de Gorlois, Igraine vira a terra, boa terra, desmanchar-se ao atrito do mar da Cornualha. Longos braços de rocha negra, áspera e alcantilada, estendiam-se pelo oceano, a partir da costa. Quando o sol brilhava, a paisagem podia ser dourada e brilhante, o céu e a água luziam como o monte de jóias que Gorlois lhe dera, no dia em que anunciara estar grávida do seu primeiro filho. Igraine, porém, jamais gostada de usá-las. A jóia que pendia agora de seu pescoço lhe fora dada em Avalon: uma pedra-da-lua que por vezes refletia o brilho do céu e do mar; mas hoje, no nevoeiro até mesmo a jóia parecia opaca.

Na cerração, os sons percorreram caminhos longos. Pareceu a Igraine, ali de pé no promontório, que, ao voltar o olhar para a terra, podia ouvir o bater dos cascos de cavalos e mulas e o som de vozes – vozes humanas, ali no isolado Tintagel, onde só viviam cabras e ovelhas, mais os pastores e seus cães, além das mulheres do castelo com algumas criadas e uns poucos homens, já idosos, para protegê-las.

Igraine voltou-se lentamente e retornou ao castelo. Como sempre, de pé à sua sombra, sentia-se pequenina ante a imponência daquelas velhas pedras, ao fim do longo promontório que se estendia pelo mar. Os pastores acreditavam que o castelo fora construído pelos Antigos, das terras perdidas; e os pescadores contavam que, em dias claros, os velhos castelos podiam ser vistos muito ao longe, sob a água. Mas para Igraine eles pareciam torres de rocha, velhas montanhas e morros engolidos pelo mar que avançava sempre, que ainda agora corroia a rocha sob o castelo. Ali, naquele fim de mundo, onde o mar comia incessantemente a terra, era fácil acreditar em áreas submersas, no oeste. E falavam ainda de uma grande montanha de fogo que explodira, muito mais para o sul, carregando todo um grande país que ali existia. Igraine não sabia se acreditava ou não nessas histórias.

Sim, certamente podia ouvir vozes na cerração. Não seriam atacantes selvagens vindo do mar ou do litoral selvagem de Erin. Há muito havia passado a época em que ela se sobressaltava a um som ou uma sombra estranhos. Não era seu marido, o Duque: ele estava muito longe, ao Norte, lutando contra os saxões, ao lado de Ambrósio Aureliano, o Grande Rei da Bretanha, e teria avisado se pretendesse voltar.

Não precisava ter medo. Se os cavaleiros fossem hostis, os guardas e soldados do forte situado no ponto em que o promontório se ligava à terra, ali colocados pelo Duque Gorlois para proteger sua mulher e filha, os teriam detido. Seria preciso um exército para passar por eles. E quem mandaria um exército contra Tintagel?

Houve uma época – Igraine lembrava-se sem amargura, caminhando lentamente para o pátio do castelo – em que ela teria sabido quem se aproximava. Essa lembrança não lhe provocava maior tristeza, agora. Desde o nascimento de Morgana, não chorava mais de saudades de casa. E Gorlois era bondoso com ela. Tranquilizara-a quando tivera medo e ódio a princípio, dera-lhe jóias e coisas belas, troféus de guerra, cercara-a de mulheres que a serviam, e tratava-a sempre como igual, a não ser nos conselhos de guerra. Não podia ter desejado mais, exceto se tivesse desposado um homem das tribos. Quanto a isso, não tivera escolha. Uma filha da ilha sagrada deve fazer o que é melhor para seu povo, quer signifique caminhar para a morte em sacrifício, que entregar sua virgindade no Casamento Sagrado, quer casar-se, quando isso pudesse cimentar alianças. Era o que Igraine havia feito, desposando um Duque da Cornualha romanizado, cidadão que vivia ao modo romano, embora Roma tivesse deixado toda a Bretanha.

Prólogo

MORGANA FALA...
Em vida, chamaram-me de muitas coisas: irmã, amante, sacerdotisa, maga, rainha. Na verdade, cheguei agora a ser maga, e poderá vir um tempo em que tais coisas devam ser conhecidas. Verdadeiramente, porém, creio que os cristãos dirão a última palavra. O mundo das fadas afasta-se cada vez mais daquele em que Cristo predomina. Nada tenho contra o Cristo, apenas contra os seus sacerdotes, que chamam a Grande Deusa de demônio e negam o seu poder no mundo. Alegam que, no máximo, esse seu poder foi o de Satã. Ou vestem-na com o manto azul da Senhora de Nazaré – que realmente foi poderosa, ao seu modo – que, dizem, foi sempre virgem. Mas o que pode uma virgem saber das mágoas e labutas da humanidade?

E agora, que o mundo está mudado e Artur – meu irmão, meu amante, rei que foi e rei que será – está morto (o povo diz que ele dorme) na ilha sagrada de Avalon, é preciso contas as coisas antes que os sacerdotes do Cristo Branco espalhem por toda parte os seus santos e suas lendas.


Pois, como disse, o próprio mundo mudou. Houve um tempo em que um viajante, se tivesse disposição e conhecesse apenas uns poucos segredos, poderia levar sua barca para fora, penetrar o mar do Verão e chegar não ao Glastonbury dos monges, mas à ilha sagrada de Avalon; isso porque, em tal época, os portões entre os mundos vagavam com as brumas, e estavam abertos, um após o outro, ao capricho e ao desejo do viajante. Esse é o grande segredo, conhecido de todos os homens cultos de nossa época: pelo pensamento criamos o mundo que nos cerca, novo a cada dia.

E agora os padres, acreditando que isso interfere no poder do seu deus, que criou o mundo de uma vez por todas, para ser imutável, fecharam os portões (que nunca foram portões, exceto na mente dos homens), e os caminhos só levam à ilha dos padres, que eles protegeram com o som dos sinos de suas igrejas, afastando todos os pensamentos de um outro mundo que viva nas trevas. Na verdade, dizem eles, se aquele mundo algum dia existiu, era propriedade de Satã, e a porta do Inferno, se não o próprio Inferno.

Não sei o que o Deus deles pode ter criado ou não. Apesar das histórias contadas, nunca soube muito sobre seus padres e jamais usei o negro de uma de suas monjas-escravas. Se os cortesãos de Artur em Camelot fizeram de mim este juízo, quando fui lá (pois sempre usei as roupas negras da Grande Mãe em seu disfarce de maga), não os desiludi. E na verdade, ao final do reinado de Artur, teria sido perigoso agir assim, e inclinei a cabeça à conveniência, como nunca teria feito a minha grande Senhora, Viviane, Senhora do Lago, que depois de mim foi a maior amiga de Artur, para de transformar mais tarde em sua maior inimiga, também depois de mim.

A luta, porém, terminou. Pude finalmente saudar Artur, em sua agonia, não como meu inimigo e o inimigo de minha Deusa, mas apenas como meu irmão, e como um homem que ia morrer e precisava de ajuda da Mãe, para a qual todos os homens finalmente se voltam. Até mesmo os sacerdotes sabem disso, como sua Maria sempre-virgem em seu manto azul, pois ela, na hora da morte, também se transforma na Mãe do Mundo.

E assim, Artur jazia enfim com a cabeça em meu colo, vendo-me não como irmã, amante ou inimiga, mas apenas como maga, sacerdotisa, Senhora do Lago; descansou, portanto, no peito da Grande Mãe, de onde nasceu, e para quem, como todos os homens, tem de finalmente voltar. E talvez – enquanto eu guiava a barca que o levava, desta vez não para a ilha dos padres, mas para a verdadeira ilha sagrada no mundo das trevas que fica além do nosso, para a ilha de Avalon onde, agora, poucos, além de mim, poderiam ir –ele estivesse arrependido da inimizade surgida entre nós.


AO CONTAR ESTA HISTÓRIA, falarei por vezes de coisas que ocorreram quando eu ainda era demasiado jovem para compreendê-las, ou quando não estava presente. Meu leitor fará uma pausa e dirá, talvez: “Esta é a sua magia.” Mas eu tive sempre o dom da Visão, de ver o interior da mente dos homens e mulheres; e durante todo esse tempo, estive perto de todos. Assim, por vezes, tudo o que pensavam era do meu conhecimento, de uma forma ou de outra. Por isso, contarei esta história. Um dia também os padres a contarão, tal como a conhecem. Talvez entre as duas se possa perceber alguns lampejos de verdade.

O que os sacerdotes não sabem, com o seu deus uno e sua verdade única é que não existe história totalmente verdadeira. A verdade tem muitas faces e assemelha-se à velha estrada que conduz a Avalon: o lugar para onde o caminho nos levará depende da nossa própria vontade e de nossos pensamentos, e, talvez, no fim, chegaremos ou à sagrada ilha da eternidade, ou aos padres, com seus sinos, sua morte, seu Satã e o Inferno e danação... Mas talvez, eu seja injusta com eles. Até mesmo a Senhora do Lago, que odiava a batina do padre tanto quanto teria odiado a serpente venenosa, e com boas razões, censurou-me certa vez por falar mal do deus deles.

“Todos os deuses são um deus”, disse ela, então, como já dissera muitas vezes antes, e como eu repeti para minhas noviças inúmeras vezes, e como toda sacerdotisa, depois de mim, há-de dizer novamente, “e todas as deusas são uma deusa, e já apenas um iniciador. E a cada homem a sua verdade, e Deus com ela.”

Assim, talvez a verdade se situe em algum ponto entre o caminho para Glastonbury, a ilha dos padres e o caminho de Avalon, perdido para sempre nas brumas do mar do Verão.

Mas esta é a minha verdade; eu, que sou Morgana, conto-vos estas coisas, Morgana que em tempos mais recentes foi chamada Morgana, a fada.